Resenha do livro Calibã e a Bruxa, de Silvia Federici.
A acumulação primitiva, descrita por Marx, localiza nos cercamentos [enclosures], iniciados no século XVI na Inglaterra, uma condição histórica do capitalismo. Antes, o sistema de propriedade previa diferentes usos da terra. Os camponeses tinham o direito de explorar as terras comuns para atividades específicas, como pasto, plantio ou pesca, ou ainda, delas extrair matérias-primas, como terra ou gravetos. Esses direitos de uso não eram relacionados a um título de propriedade.
Há palavras usuais inglesas, que nem suspeitamos ligadas a esse contexto, mas que trazem a marca da fase que precedeu o capitalismo. Husband, marido em inglês, veio de husbandman que, no início da era moderna, designava um pequeno proprietário de terras, com status um pouco inferior ao do fazendeiro. Assim, antes de significar marido, husband era o mestre da casa: o amo, o responsável pela propriedade (que também coordenava os serviços aí executados pela família – papel do marido).
No final do século XVII, um quarto das terras na Inglaterra estava cercada. Esse dispositivo retira hordas de pessoas de sua terra natal, despossuindo-as de seus meios de subsistência, para usar sua força de trabalho em novos projetos econômicos. Foi assim que o trabalho pôde ser transformado em uma mercadoria a ser posta a venda.
Outra face do processo de cercamento foram as navegações. No final do século XVI, houve uma mudança de poder dos países ibéricos, como Espanha e Portugal, para os mais ao norte, como Inglaterra, França e Holanda. Exemplar nessa mudança foi o Sea-Venture, navio inglês que atravessava o Atlântico até o Caribe. Ganhou fama ao ser citado por Shakespeare em A Tempestade.
Na peça, o personagem Calibã, representação do escravo e do selvagem, afirma seu direito à terra evocando sua mãe: “essa ilha é minha, por Sycorax, minha mãe”. Calibã falava pelos nativos da América, que estavam sendo “descobertos”, e pelos despossuídos europeus, expropriados pelos senhores de terra.
E onde está Sycorax nessa história? Não à toa, o coletivo feminista que traduz o livro retoma a personagem.
Silvia Federici traz à cena o lugar das mulheres nesse processo, apontando como processos específicos da acumulação de capital – justamente os que envolvem o papel das mulheres – não foram abordados por Marx ou pelos marxistas.
O destino das mulheres pobres na Europa, neste período, foi similar ao das mulheres negras nas plantations. Eram forçadas por seus senhores a se tornar criadoras de novos trabalhadores (principalmente depois do fim do tráfico de escravos). Seu corpo foi transformado em “instrumento para a reprodução do trabalho e para a expansão da força de trabalho, tratado como uma máquina natural de criação”.
A condição de mulher escrava revela mais explicitamente como essa lógica é necessária à acumulação capitalista. O excesso populacional, visto por Adam Smith e Marx como efeito natural do desenvolvimento econômico, nada tem de natural. A procriação, responsável pelo aumento da população, é obtida pelo controle do corpo da mulher.
O foco do livro de Federici é mostrar que esse controle tem uma longa história na qual mulheres foram expropriadas do controle sobre o próprio corpo. O poder reprodutivo sobre o próprio corpo foi caçado, junto com as bruxas.
A invisibilização do trabalho da mulher foi obtida, ao longo da história, por meio de dispositivos extremamente sofisticados. A naturalização foi o mais forte deles. O trabalho doméstico, especialmente aquele relacionado aos cuidados – com a casa, com os filhos e até com o marido, foi incorporado aos costumes como uma dádiva: um trabalho feito por amor. But they say love, we say unwaged work, já dizia Silvia Federici em outra obra.
Tem sido uma tônica no feminismo, desde os anos 1970, o reconhecimento da especificidade do trabalho das mulheres, assim como a denúncia de sua inserção desigual no mercado de trabalho. Sim, as mulheres querem reconhecimento pelo seu trabalho, querem ganhar tão bem quanto os homens, querem ter direito a uma vida pública. Mas é muito mais do que isso.
A especificidade do trabalho das mulheres, como foi historicamente determinada, aponta um caminho para a urgente redefinição da categoria de trabalho como um todo.
Queremos que toda a esquerda preste mais atenção ao que estamos dizendo quando mostramos que, há muitos séculos, temos realizado diversos trabalhos invisíveis enquanto tal. As relações capitalistas avançam a passos largos sobre um terreno que, até aqui, não era considerado como do âmbito da produção de valor: o terreno da reprodução social.
Feministas marxistas denunciam, desde os anos 1970, o campo da reprodução social como um campo de produção ativa, só que invisibilizado enquanto tal pelo marxismo. O trabalho doméstico, condição da exploração capitalista, foi naturalizado e negligenciado nos âmbitos do que sempre se reconheceu como trabalho: o trabalho assalariado e a produção industrial. Essa invisibilização foi fruto de um imaginário político que dava centralidade ao trabalhador macho e branco, incapaz de incorporar na teoria do valor todo um campo relegado à esfera privada, ao trabalho fora da fábrica ou ao trabalho não pago de modo geral.
Hoje, quando o trabalho afetivo, cognitivo e corporal é componente central da valorização capitalista, quando o trabalho passa a ser explorado em todas as dimensões da existência, as críticas feministas e descoloniais à concepção marxista de trabalho são ainda mais fundamentais. E podem indicar uma saída dos impasses e falsas dicotomias que vivemos – como as que opõem as lutas das minorias às pautas universais da classe trabalhadora.
Artigo publicado na Revista DR. Disponível em: https://revistadr.com.br/posts/tornar-invisivel-o-trabalho-das-mulheres-a-historia-e-longa/