O Papa e a inteligência artificial

À diferença do século XIX, a perspectiva agora não é haver melhora nas condições de trabalho, e sim a extinção pura e simples de vagas.

O Papa e a inteligência artificial

As previsões sobre a escolha do novo Papa erraram feio, também quanto ao nome usado pelo pontífice. Desde o início do conclave, achava-se que o italiano Pietro Parolin tinha mais chances. Os palpites sobre a homenagem variavam entre João, João Paulo, Francisco e Bento. Ao escolher o nome Leão XIV, Robert Francis Prevost surpreendeu a todos, com uma justificativa intrigante:

— O Papa Leão XIII, com a encíclica Rerum Novarum, abordou a questão social no contexto da primeira grande Revolução Industrial. Hoje, a Igreja oferece a todos seu patrimônio de doutrina social para responder a uma nova Revolução Industrial e ao desenvolvimento da inteligência artificial (IA), que traz novos desafios para a defesa da dignidade humana, da justiça e do trabalho.

Escrita em 1891, Rerum Novarum quer dizer “das coisas novas” e remete às inovações tecnológicas daquela Revolução Industrial. A relação das pessoas com o próximo e com o trabalho passava por mudanças preocupantes, o que explica o subtítulo da encíclica: “Sobre a condição dos operários”.

Quando Leão XIII assumiu o papado, em 1878, lâmpadas elétricas começavam a iluminar espaços públicos, e a eletricidade passava a ser usada para fins industriais. Ao mesmo tempo, a exploração dos trabalhadores aumentava, com jornadas extenuantes, dando lugar a greves e convulsões sociais. Segundo o Papa, era preciso evitar radicalização, protegendo os trabalhadores: “O Estado pode (…) melhorar muitíssimo a sorte da classe operária”, pois “deve servir ao interesse comum”. O Estado deveria garantir direitos, e a organização coletiva era bem-vinda (desde que não recorresse à greve). Assim, vimos nascer a Doutrina Social da Igreja e a ideia de uma democracia cristã.

Essas referências históricas, embutidas na declaração do Papa Leão XIV, renovam a esperança de que consigamos dar mais atenção aos impactos sociais das novas tecnologias. Com a inteligência artificial, muitos empregos estarão ameaçados, com efeitos sociais imprevisíveis. Privadas da renda e da dignidade conferidas pelo trabalho, grandes massas da população tendem a se radicalizar. Mas, à diferença do século XIX, a perspectiva agora não é haver melhora nas condições de trabalho, pela ação de sindicatos organizados, e sim a extinção pura e simples de postos de trabalho, o que leva a uma radicalização niilista, acompanhada de ataques às instituições e à democracia.

O remédio, mais uma vez, passa pelo papel do Estado. É urgente inserir o máximo de pessoas na transição tecnológica, proteger socialmente os que ficarem fora e regular o mercado para que os ganhos não se concentrem nas mãos de poucos. Acima de tudo, precisamos atrair desenvolvimento de ponta para o país, com foco em IA, como o Rio já vem fazendo e o governo federal mostra ter como prioridade (nos planos de IA e na reforma tributária).

Vivemos desafios similares aos da Revolução Industrial, porém mais agudos. A mensagem do novo Papa precisa ser ouvida para evitarmos a corrosão da democracia.

Artigo publicado em O Globo em 20/05/2025, disponível em: https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2025/05/o-papa-e-a-inteligencia-artificial.ghtml

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