Ter um problema é tido como algo ruim. Significa viver um impasse, passar por uma situação difícil. Na Matemática é o contrário. Ter um problema é o primeiro passo para uma pesquisa de sucesso.
Ter um problema é tido como algo ruim. Significa viver um impasse, passar por uma situação difícil. Na Matemática é o contrário. Ter um problema é o primeiro passo para uma pesquisa de sucesso. Sobretudo se for um bom problema, pois há problemas ruins também – aqueles que não levam a nada. Bom problema é o que gera frutos, que conduz à criação de proposições, conceitos e ferramentas que se tornarão úteis à pesquisa matemática.
Um exemplo é a invenção dos números irracionais. Lá pelo século 4 antes da nossa era, os matemáticos tinham um problema: como a diagonal do quadrado (e outros segmentos de reta análogos) pode ser medida?
Para entender a questão, precisamos lembrar que medir é comparar. Tomamos um segmento de tamanho fixo que denominamos “unidade de medida”. Em seguida, vemos quantas vezes este segmento cabe dentro de outro. O resultado é a medida deste outro segmento. Mas será que este processo sempre dá certo? Tomemos o caso da diagonal e de um lado do quadrado na figura. É possível subdividir o lado de modo a obter um segmento que caiba um número contável de vezes dentro da diagonal? Desafiando a intuição, a resposta é negativa. Procedimentos geométricos já o mostravam antes mesmo da época de Euclides, o geômetra grego mais conhecido, que escreveu seus “Elementos” no século 3 antes da nossa era.
Trata-se do problema da incomensurabilidade entre a diagonal e o lado do quadrado. O lado e a diagonal não são comensuráveis, isto é, não podem ser medidos um pelo outro: mesmo subdividindo-se o lado do quadrado em partes iguais a nosso bel prazer, isto é, em partes tão pequenas quanto queiramos, não encontraremos um segmento que caiba um número contável de vezes dentro da diagonal. A consequência é a inexistência de um número para medir a diagonal do quadrado dentro do universo dos números existentes na época, aqueles que são obtidos pela contagem e que chamamos hoje de “números naturais”.
Ao contrário de inúmeras lendas que dizem ter sido um escândalo a descoberta dos incomensuráveis, evidências históricas sugerem que, na época, os geômetras abraçaram o problema de modo produtivo. Os “Elementos” de Euclides testemunham isso, pois ali se encontram procedimentos geométricos sofisticados para trabalhar com grandezas geométricas enquanto tais, sem associá-las a números, ou seja, sem medir. Por exemplo, construir, usando régua (não graduada) e compasso, um quadrado cuja área seja igual a de um retângulo dado. Ou mostrar que, dado um triângulo retângulo, a área do quadrado construído sobre a hipotenusa equivale à soma das áreas dos quadrados construídos sobre os catetos. Este último teorema é uma versão puramente geométrica do que conhecemos como teorema de Pitágoras (que dificilmente foi enunciado por Pitágoras).
Apenas no século 19, por motivos que não cabem aqui – e serão tratados em um próximo artigo –, os matemáticos propuseram um novo tipo de número para medir segmentos como a diagonal do quadrado: os números irracionais. Hoje, aplicando-se o teorema de Pitágoras ao quadrado de lado 1, concluímos que sua diagonal mede √2, que é um número irracional. Esta solução numérica foi proposta mais de 20 séculos depois do problema geométrico da incomensurabilidade ter sido colocado. Neste longo intervalo histórico, não é difícil imaginar que tenha existido muita investigação matemática interessante.
Definições, conjecturas, teoremas ou demonstrações fazem parte do arcabouço conceitual da Matemática, e seus critérios mudam com o tempo. Os problemas são o motor da mudança e da evolução da Matemática. São eles que indicam o que é relevante, são eles que apontam os caminhos a seguir e solicitam novas invenções. No final deste percurso, são obtidos os teoremas. Diferentemente dos problemas, teoremas são verdades gerais e eternas. Uma vez enunciados, aspiram à legitimidade e à validade universal. Para todo triângulo retângulo, o quadrado da hipotenusa é sempre igual à soma dos quadrados dos catetos – é um exemplo conhecido de teorema.
Palavras como todo e sempre definem bem a generalidade e a eternidade que se espera dos teoremas. Já os problemas abrem caminhos múltiplos, sujeitos à contingência da história. Homens e – infelizmente, poucas – mulheres tiveram que enfrentar as limitações das ferramentas disponíveis em seu tempo para solucionar os problemas que surgiam. O caso da incomensurabilidade é paradigmático, pois deu origem a uma quantidade enorme de técnicas matemáticas, durante os mais de 20 séculos que separam sua descoberta da definição dos números irracionais.
Um inconveniente no ensino da Matemática é partir menos de problemas do que das ferramentas inventadas para resolvê-los. Deste modo, a Matemática ganha ares de saber operacional e mecânico, sempre verdadeiro, avesso ao erro e à hesitação. Mesmo quando problemas são propostos aos alunos, parece que o objetivo principal é resolvê-los. Transmite-se, assim, uma impressão de que a solução é o mais importante, de que os enunciados gerais e eternos estão acima das perguntas que os geraram. O efeito mais perverso desta tendência é que a beleza da Matemática fica escondida atrás de seu poder. Teoremas são verdadeiros e eternos, mas são os problemas que lhes dão sentido. Qualquer pesquisador em Matemática sabe o quão valioso é um bom problema – um problema que faça sentido, que abra caminho para uma investigação proveitosa.
Como transmitir esse gosto aos estudantes? Ou, ao menos, como fazer para que os estudantes não enxerguem a Matemática como um saber inacessível e antipático? Esta é uma das perguntas mais importantes para superarmos as dificuldades de aprendizagem na Matemática do Ensino Básico. Sem despertar o gosto pelos problemas que a movem, a Matemática continuará a ser vista pelos estudantes como um saber impositivo e mecânico que, na maioria dos casos, deve-se aprender por obrigação. Isto pode explicar certa aversão à Matemática, que não é difícil encontrar no senso comum.
O ensino precisa apostar mais no aspecto problemático dos enunciados e das ferramentas matemáticas. A história pode auxiliar nesta tarefa, mas também a tecnologia ou a relação com outras disciplinas, como física, computação e sociologia. Há duas maneiras de abordar a história da Matemática, o que vale também para a relação dela com outras áreas do conhecimento. Uma é ratificar a imagem que já se tem, mostrando como a Matemática tornou-se uma ciência majestosa, constituída por técnicas precisas e teoremas irrefutáveis. Outra, mostrar que esta mesma Matemática se constituiu a partir de problemas, colocados e abordados por homens e – recentemente, cada vez mais – mulheres em sua lida incessante e obstinada com a arte da invenção.
Artigo publicado no jornal O Globo. Disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/matematica-tem-problemas-mas-isso-pode-ser-bom.html