Ciência e política têm de se entender sobre crise climática

Temos de desenhar estruturas não eleitas, orientadas por legislação específica e blindadas contra desmontes.

Ciência e política têm de se entender sobre crise climática

Temos de desenhar estruturas não eleitas, orientadas por legislação específica e blindadas contra desmontes.

Cientistas já tinham previsto as enchentes no Rio Grande do Sul, mas não foi feito o que teria sido necessário para prevenir os impactos mais graves. A conclusão evidente é que a política deve escutar mais a ciência. Isso é fato, porém cabe ressaltar que a emergência climática traz desafios inéditos para a relação entre ciência e política.

Em primeiro lugar, os acordos para mitigação do aquecimento global — que depende da redução da emissão de gases de efeito estufa — não têm sido cumpridos. Os compromissos não obrigatórios dos países dependem de uma sensibilidade política que destoa da lógica eleitoral. Para que medidas efetivas sejam implementadas, será preciso reformar as instituições globais e as conferências do clima — uma missão importante para nosso país, que sediará a cúpula em 2025.

Um segundo alerta diz respeito à adaptação de nossas cidades para secas e enchentes mais frequentes e mais intensas. Temos planos de adaptação climática bem concebidos; e o Senado acaba de aprovar diretrizes para a ação coordenada entre os entes federativos. A notícia é boa, mas ainda faltam os instrumentos de implementação. A temporalidade eleitoral é avessa a projetos estruturantes de longo prazo.

Eleger representantes comprometidos com a causa ambiental é decisivo, mas precisamos de estruturas decisórias que tenham a perenidade necessária para implementar os projetos de adaptação recomendados pela ciência. Mesmo com bons governantes e gestores públicos, capazes de enxergar além do retorno imediato, isso não garante a continuidade das políticas públicas. Temos de desenhar estruturas não eleitas, orientadas por legislação específica e blindadas contra desmontes. Esses centros municipais de adaptação poderiam partir da articulação entre poderes públicos (de todos os níveis), instituições científicas, sociedade civil e iniciativa privada, com governança compartilhada e garantia legal de execução.

O terceiro desafio é fazer com que as recomendações da ciência sejam consideradas na tomada de decisão política. Uma enxurrada de fake news tem atrapalhado as ações diante da catástrofe do Rio Grande do Sul. Para prepararmos o futuro, é essencial que todos compreendam a relação entre a gravidade do desastre e as mudanças climáticas, uma conclusão consensual entre cientistas. Muitos ainda negam essa associação. Como convencer quem invoca argumentos estapafúrdios para negar o consenso científico? Não basta atribuir o negacionismo à ignorância. Podemos fazer mais: divulgação científica, reorientação das pesquisas para lidar com a opinião pública, criação de instâncias participativas e iniciativas cidadãs para a escuta da ciência. Essas iniciativas já existem, mas devem se tornar regulares.

Vivemos tempos de mudanças sem precedentes. Não adianta atravessar a crise com instrumentos do passado. Precisamos renovar as instituições e diminuir a distância entre ciência e política. Vai dar trabalho, mas, sem isso, só nos resta esperar a próxima catástrofe anunciada.

Artigo publicado no jornal O Globo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2024/05/ciencia-e-politica-tem-de-se-entender-sobre-crise-climatica.ghtml

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