Nos acalorados debates envolvendo a ciência, têm surgido alertas lembrando que o fazer científico lida com dúvidas e controvérsias — e não apenas com verdades definitivas.
Nos acalorados debates envolvendo a ciência, têm surgido alertas lembrando que o fazer científico lida com dúvidas e controvérsias — e não apenas com verdades definitivas. Só que o trabalho de cientistas visa a obter certezas, ou seja, procura ultrapassar a dúvida em busca de teorias estáveis, por meio de métodos e protocolos definidos e empregados por uma comunidade de pessoas treinadas para isso. Negacionistas tentam fazer justamente o contrário: inocular a dúvida em verdades estabelecidas. Trata-se de um movimento com fins políticos, estudado e documentado por pesquisas sérias, como o livro “Os mercadores da dúvida” (que deu origem a uma CPI no Congresso dos Estados Unidos).
Não podemos ser ingênuos ao lidar com esses movimentos. Claro que a ciência preza as perguntas, mas como ponto de partida na produção de consensos que devem ser validados por uma ampla gama de cientistas. O que garante a estabilidade da verdade científica são as verificações, o tempo decorrido desde que ela foi enunciada e a quantidade de pessoas especializadas em contestar cada um dos detalhes. Tendo resistido, os resultados podem figurar como verdadeiros. Por isso não se pode afirmar que a Terra é plana.
A pandemia foi um desafio para os cientistas, pois expôs ao debate público pesquisas em via de elaboração, diferentes dos resultados que costumam ser exibidos em programas de divulgação científica. Agora, o padrão de testes sobre medicamentos e vacinas é debatido no YouTube, artigos não revisados são divulgados no Twitter. É bom ou ruim? Se fosse apenas uma manifestação de interesse mais amplo pela ciência, seria bom. Mas está em jogo uma disputa de autoridade sobre quem pode proferir enunciados científicos para embasar políticas públicas. E essas políticas podem ter consequências letais.
Sem dúvida, a ciência deve se comunicar mais e melhor. Mas uma coisa é ela se comunicar, outra é dar a negacionistas a dignidade de interlocutores válidos. Muitos falsos cientistas são porta-vozes de interesses políticos em semear a dúvida contra consensos estabelecidos. Qualquer um pode fazer ciência? Sim, desde que passe pelo treino necessário. Por isso, o acesso à universidade deve ser democrático. Isso não tem nada a ver com dar espaço para charlatães. A vitimização desses tipos tem se tornado tão comum que ganhou um nome: o gambito de Galileu. Trata- se da comparação com o italiano de qualquer um que se diga na contramão da ciência estabelecida.No meio de tanta cacofonia, é útil notar que a dúvida vem sendo usada como arma (em inglês há um termo para isso: weaponization). Técnicas de contra-argumentação ganham escala mundial (e crescem pari passu com a extrema direita) porque a instrumentalização da controvérsia com fins políticos é uma tática. Diante disso, a comunidade científica não pode hesitar em defender sua autoridade. Sem arrogância, pois empáfia nunca foi um modo profícuo de conquistar autoridade. Mas sem concessões tampouco a falsificações do pluralismo, como nas injunções para que “os dois lados sejam ouvidos”. Não há dois lados na ciência. Há muitos lados enquanto a ciência é feita, como no caso das vacinas contra Covid-19, mas, para participar dessa elaboração, é preciso cumprir pré-requisitos e exibir credenciais (treino especializado e formação em instituições qualificadas). No caso da ciência já feita, quando se trata de uma teoria científica estável, como a evolução ou o formato da Terra, só existe um lado mesmo.
Artigo publicado no jornal O Globo. Disponível em https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/nao-existem-dois-lados-na-ciencia.html