As mulheres e a objetividade

Pensar dentro dos cânones acadêmicos exige uma série de habilidades — foco, concentração, distanciamento, precisão, enrijecimento do corpo, dureza frente à aridez e à solidão do trabalho intelectual. Será que os homens têm mais facilidade com isso do que as mulheres?

As mulheres e a objetividade

Pensar dentro dos cânones acadêmicos exige uma série de habilidades — foco, concentração, distanciamento, precisão, enrijecimento do corpo, dureza frente à aridez e à solidão do trabalho intelectual. Será que os homens têm mais facilidade com isso do que as mulheres?

Pensar dentro dos cânones acadêmicos exige uma série de habilidades — foco, concentração, distanciamento, precisão, enrijecimento do corpo, dureza frente à aridez e à solidão do trabalho intelectual. Será que os homens têm mais facilidade com isso do que as mulheres? Por que até hoje eles ocupam posições de destaque e poder nos meios científicos, especialmente nas ciências ditas duras?

Ainda temos muitos problemas a resolver quanto à falta de oportunidades iguais, mas quero trazer a questão para um campo menos explorado. O próprio modelo de cientificidade em vigor implica um compromisso com habilidades que foram se afirmando, ao longo da História, como elementos essenciais para a prática científica. Ao mesmo tempo, eram excluídas outras dimensões, como a emoção, a intimidade, o desejo e o intempestivo. O mundo tornou-se matéria para a objetividade, devendo ser observado e descrito da forma mais descomprometida possível, enquanto a subjetividade foi se restringindo à dimensão privada.

A objetividade não é uma condição inerente ao fazer científico. É um valor associado a uma prática de conhecimento que tem a sua história. Para refletir o mundo como ele é, o cientista precisa lutar contra um inimigo específico: ele próprio. O sujeito possui vontade própria, logo é acometido por uma tentação irresistível de se projetar fora de si. Como garantir, então, que os fenômenos observados no mundo não estejam maculados por nossa vontade? Como garantir que não estamos vendo apenas o que queremos ver? O olho não vê tudo, ele vê o que quer. Para criar um olho de cientista, a pessoa precisa ser treinada a ver o que é preciso.

A tese é da historiadora da ciência Lorraine Daston, e de seu colega Peter Galison, no livro ‘Objetividade’ (disponível só em inglês, por enquanto). A partir do século XIX, o fazer científico implicou forjar um corpo, tornar-se espelho do mundo, ser capaz de bloquear a vontade irresistível que têm os corpos de se projetar para fora de seus contornos. Ser cientista passou a implicar, portanto, submeter-se a um treinamento, a uma disciplina de autoaniquilação e autocontrole. As técnicas de medida e precisão exigiam esse corpo treinado.

Isso significa que não se podia ter intimidade, vontade própria, intuição ou sentimentos? Claro que sim, mas essas características passaram a constituir um campo separado — o da subjetividade. A objetividade surge como delimitação de um âmbito privado para a subjetividade. Desvendar o mundo exige um trabalho árduo, exige uma habilidade para colocar de lado o que vem de dentro a fim de explorar o que existe lá fora. Assim, a expressão ‘homens de ciência’ virou sinônimo de cientista.

A Universidade de Cambridge admitiu uma mulher como membro pleno em 1947. Antes, mulheres só podiam frequentar escolas exclusivas dentro da universidade. Já os rapazes, além de outros tipos de incentivo, usufruíam do apoio das irmãs, que deviam doar seu trabalho — passavam suas camisas e preparavam suas refeições. Virginia Woolf estudou em casa, confinada à vida privada, enquanto seus irmãos iam para Cambridge. Quando, já escritora, foi solicitada a assinar um manifesto contra a guerra que incluía uma exaltação da cultura e da liberdade intelectual, recusou-se a ‘cerrar fileira com os homens cultos’.

Não passamos mais camisas, delegamos essas tarefas a outras mulheres mais negras e mais pobres, e podemos trabalhar fora. Mas o caminho entre a vida privada e a vida pública ainda é um problema para as mulheres. Precisamos criar um corpo adequado, ficar mais calmas e razoáveis. O trabalho intelectual exige vencer barreiras quase invisíveis. Que mulher já não se sentiu desconfortável em um meio em que não somente há uma maioria de homens, mas no qual também impera um jeito de falar como homem, um código implícito, um ritual a ser seguido? Na academia, só há espaço para a racionalidade, o tom razoável, o discurso embasado, a argumentação erudita. Valores tidos por universais, mas que foram, sutil e universalmente, impostos por homens.

Neste momento em que nossos corpos clamam por sair dos moldes em que foram encaixados, em que a Terra grita avisando ser impossível continuar a pensar sem levá-la em consideração, a universidade não pode passar incólume. O ingresso de negras e negros, indígenas ou qualquer grupo que tenha estado excluído dessa longa história não é só questão de justiça social, é uma oportunidade de inventar novos parâmetros para o pensamento. Começar tudo de novo, refazer desde o início nossos padrões de cientificidade e questionar a que projeto de mundo eles têm servido.

Artigo publico no jornal O Globo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/agoraequesaoelas-17984852

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